O espaço público e urbano

Onde ocorrem múltiplas relações e eventos, e a arte também se mostra presente

ARTEESPAÇOESPAÇO PÚBLICOESPAÇO URBANO

Christiane Martins

5/8/20247 min read

No mundo das mercadorias, o consumidor não compra apenas um espaço mais ou menos povoado com signos de prestígio e hierarquia social. Ele também adquire uma distância, a que vincula sua habitação aos lugares: os centros (de comércio, de lazeres, de cultura, de trabalho, de decisão), e isso pode ser relacionado à mudança que o homem moderno faz do emprego de seu tempo.

Nos últimos tempos tem ocorrido uma aceleração no tempo diário da vida social, mudança que veio junto com a conversão da sociedade rural em sociedade urbana, na pós-revolução industrial, e cuja consequência foi o aumento da densidade e da heterogeneidade de classes, dos modos de vida etc. dos habitantes das cidades, criando microterritorialidades e distinguindo áreas públicas de áreas privadas. E as áreas de acesso público, por mais que se tente institucionalizar o seu uso, ainda são ocupadas por um número significativo de artistas, camelôs, andarilhos, mendigos, prostitutas, enfim, por aqueles colocados à margem da sociedade e que, tendo ou não um espaço legítimo de ocupação, acabam usando o espaço público, e também urbano.

Henri Lefebvre (2008) diz que “excluir do urbano grupos, classes, indivíduos, implica também excluí-los da civilização, até mesmo da sociedade” (p.32). Assim, utilizar as vias públicas é um direito de todo cidadão, pois é nesse espaço, como um todo, que as relações sociais são produzidas, reproduzidas e mantidas, sendo esse também o espaço no qual contradições e conflitos existentes na sociedade se manifestam. Já Oskar Negt (2002) complementa esse pensamento ao defender que as relações desenvolvidas no espaço público se dão conforme o lugar específico em que as pessoas se encontram (rua, estação de trem, ponto de ônibus, posto de saúde, entre outros), e nesse espaço público urbano ocorre a convivência com o estranho, além de que, no espaço público, todos são estranhos, porém assumem papéis sociais já conhecidos.

Por isso, a rua pode ser entendida como ponto predominante ao se pensar em espaço público, sendo esse o lugar onde se dão múltiplas relações e eventos. É na rua que, muitas vezes, podem ocorrer inversões de papéis, de posturas, condutas que não são permitidas ou explicitadas no âmbito familiar. É o espaço onde, como dito anteriormente, nos encontramos com o estranho sendo também estranhos, onde podemos nos revelar e rebelar, é o lugar onde “tudo pode”.

Dizemos “tudo pode” porque há, no espaço público, o paradoxo do permissivo, pois, ao mesmo tempo em que é um espaço aberto e livre a todos, sofre uma série de regulamentações e leis, as quais incorporamos no nosso cotidiano, aceitando-as e legitimando-as.

Em relação ao olhar artístico sobre o espaço urbano, como coloca Henri Lefebvre[1] (2008), a cidade deve ser vista a partir de seu duplo aspecto, que seria: percebê-la através dos diversos monumentos que a modelam, ou seja, definem sua imagem; e perceber como os cidadãos empregam seu tempo nesse espaço e, ainda, a diversidade de olhares voltados para a cidade, para o espaço físico.

Assim, a percepção do tempo no meio urbano é contaminada por uma atmosfera fervilhante, pelos meios de transporte, pelo comércio, pelos arranha-céus, enfim, pelo vaivém constante de pessoas, veículos, sons, imagens; fatos que alteram constantemente a visão que o homem tem do mundo, e que também alteram o seu comportamento, o que permite ao mundo se transformar de maneira a refletir tal transformação em toda a cultura humana, podendo, em muitos casos, ser a arte a condutora ou simplesmente apontar a possibilidade de tal transformação.

Os artistas, ao construírem suas obras, costumam dialogar com o seu meio, com a arquitetura que os rodeia, com os códigos sociais estabelecidos em sua época. Dessa forma, não há como desvincular o meio urbano das criações artísticas contemporâneas, o que acaba sendo tema de discussão nas mais diversas áreas. Na visão da arquiteta Vera Pallamin (2002), por exemplo, a construção das obras de arte em meio à via pública pode ser entendida como práticas que:

[...] são apresentação e representação dos imaginários sociais. Sendo um campo de indeterminação, a arte urbana adentra a camada das construções simbólicas da produção de seus valores de uso, sua validação ou legitimação, assim como de discursos e formas sedimentares de representação culturais ali expostas. Pode criar situações de visibilidade e presença inéditas, apontar ausências notáveis no domínio público ou resistências às exclusões aí promovidas, desestabilizar expectativas e criar novas convivências, abrindo-se a uma miríade de motivações (PALLAMIN, 2002, p.108).

Para entender melhor o que Pallamin nos aponta, podemos pensar nos grafites e nas pichações que surgiram como uma forma de manifestar a insatisfação, a ideologia, em suma, a vontade de se expressar artisticamente no meio urbano, ou ainda, como um equipamento urbano de provocação, seja através das imagens do grafite ou das frases das pichações.

Os grafites podem ser vistos em muros, túneis, paredes. Eles são a forma de manifestação artística que mais dialoga com os espaços públicos da cidade, e que vêm, aos poucos, desde a década de 1980, se legitimando enquanto arte.

Contudo, o grafite, mesmo rompendo com algumas regras das artes tradicionais e tornando o transeunte receptor da obra, ainda assim o mantém numa posição passiva, enquanto, em outro viés, vemos artistas, desde as vanguardas artísticas da década de 1960, ocupando o meio público e urbano e, principalmente, transformando o transeunte em parte ativa da obra, fazendo-o perturbar-se com aquilo que presencia, provocando nele emoções diversas até o extremo de impor-se fisicamente na obra, ou ainda, fazê-lo perceber a obra e deixá-lo optar por permanecer em inércia.

Até mesmo na linguagem teatral mais tradicional veremos que, há séculos, ela ocupa a rua, através do que hoje denominamos uma especificidade dentro das artes cênicas, que é o teatro de rua, que ocupa, de maneira legítima, praças, terrenos desocupados e até mesmo o centro das vias e apresenta seus espetáculos para todos os passantes.

Esses artistas de rua fazem com que a arte, posta no espaço urbano, integre o cotidiano da cidade e de seus transeuntes, colocando-os em uma espécie de confronto reflexivo, através da aproximação entre a obra de arte e seus espectadores, não colocando limites entre ambos, e sim intensificando esse encontro, criando momentos de reflexão tanto acerca do que diz respeito ao fazer artístico como ao lugar e os papéis que a arte, o artista e os espectadores ocupam na sociedade.

Pensando na utilização do espaço público pelos artistas a partir da década de 1970, a historiadora de arte Claudia Büttner (2002) realça o fato de esses artistas lidarem diretamente com a reação dos espectadores / transeuntes, considerando a presença destes naquele espaço um dos aspectos mais importantes de suas obras. E, também segundo Büttner, a partir da década de 1990, os artistas passaram a não se importar tanto com a liberação da criatividade que devia disseminar-se entre os leigos, e sim com a ativação geral dos espectadores passivos, transformando-os em usuários ativos” (BÜTTNER, 2002, p. 80).

Essa relação entre obra e espectador já estava presente nos trabalhos DE Hélio Oiticica e Lygia Clark, artistas experimentalistas das artes plásticas no Brasil nos anos de 1960 e 1970, quando estes propunham “mover ‘você’ da posição passiva de espectador para o papel ativo e singular de ser o sujeito de sua própria experiência” (BASBAUM, 2008, p. 111), sendo esse um dos pontos de intersecção que pode ser apontado entre as artes cênicas e visuais. E essa característica marcante em grande parte das obras de arte realizadas no espaço urbano, de transformar o transeunte em espectador e, principalmente, em um espectador ativo, onde a obra só se completa enquanto tal no momento em que acontece a participação do espectador / transeunte, ou seja, quando há o encontro entre os dois, criando uma relação entre obra e espectador, continua pertinente nos trabalhos realizados na primeira década do século XXI.

Até mesmo na linguagem teatral mais tradicional veremos que, há séculos, ela ocupa a rua, através do que hoje denominamos uma especificidade dentro das artes cênicas, que é o teatro de rua, que ocupa, de maneira legítima, praças, terrenos desocupados e até mesmo o centro das vias e apresenta seus espetáculos para todos os passantes.

Esses artistas de rua fazem com que a arte, posta no espaço urbano, integre o cotidiano da cidade e de seus transeuntes, colocando-os em uma espécie de confronto reflexivo, através da aproximação entre a obra de arte e seus espectadores, não colocando limites entre ambos, e sim intensificando esse encontro, criando momentos de reflexão tanto acerca do que diz respeito ao fazer artístico como ao lugar e os papéis que a arte, o artista e os espectadores ocupam na sociedade.

[1] Lefebvre ainda expõe que a proximidade entre arte e cidade é muito maior do que imaginamos, assim como a ampliação de sua multidisciplinaridade, usando como exemplo o fato de que, já em janeiro de 1972, o Museu de Arte Moderna (MOMA) de New York realizou um simpósio reunindo linguistas, escritores e poetas, filósofos, semiólogos, sociólogos, entre outros, com o intuito de discutir um novo projeto que refletisse a mudança da sociedade industrial para a sociedade urbana e tecnológica.

Referências

BASBAUM, Ricardo. Clark & Oiticica. In: BRAGA, Paula (org.). Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008. P. 111 – 116.

BÜTTNER, Claudia. Projetos artísticos nos espaços não-institucionais de hoje. In: PALLAMIN, Vera M.(org.). (et. al.). Cidade e Cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 73–102.

LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2008.

PALLAMIN, Vera M. Arte Urbana Como Prática Crítica. In: PALLAMIN, Vera M. et al. (orgs.). Cidade e Cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.